UM REBELDE SEM CAUSA OU A CAUSA DA REBELDIA
Por
Sebastiao Milaré
Aos
38 anos de idade, Mário Bortolotto tem seu trabalho dramático
cada vez mais apreciado por um público que é especial
e, ao mesmo tempo, heterogêneo.
Fascina aos jovens,
que encontram na sua obra os códigos de linguagem e a palpitação
deste tempo em que os tradicionais valores morais e éticos
se diluem, uma juventude que se vê pressionada pelas contingências
globalizadoras, ou, como nos versos de Camões, por um
não sei quê, que nasce não sei onde, vem não
sei como e dói não sei por quê. Os jovens,
prisioneiros das abstrações globalizadas, por esse
não sei quê corrosivo de um mundo voltado
tão somente para os processos econômicos, acossados
pela violência que não conhece limites, encontram nos
personagens marginais de Bortolotto, na maneira de falar um tanto
estapafúrdia e contraditória, no desfile de clichês
amargamente caricatos que compõem as cenas, um espelho do
seu mundo interior, fantástico, permanentemente perplexo
frente às realidades e compulsões sociais contemporâneas.
Fascina, igualmente,
a intelectuais e homens de teatro, que encontram nessa obra transgressora,
muitas vezes debochando da própria inteligência e sempre
açoitando o senso comum, algo de realmente novo,
um processo dramático na contramão tanto do teatro
oficial quanto das vanguardas e dos pensamentos esteticistas em
moda. Percebem a atitude corajosa do autor que faz tabula rasa das
convenções e dos dogmas estéticos não
apenas na escrita dramatúrgica, mas também na encenação.
Mário Bortolotto
é homem de teatro completo: autor, encenador e ator, exercendo
todas as funções com brilho que muitas vezes incomoda,
não seduz com o açúcar da premeditada cumplicidade,
da adulação à inteligência do espectador.
Nada disso. Coloca veneno nas frases, no gesto, no movimento cênico.
Não quer agradar ninguém, quer somente expor sua visão
de mundo, recorrendo ao cinismo, às metáforas degradantes,
alcançando muitas vezes, através do deboche, situações
verdadeiramente poéticas, elevadas vai pelos esgotos
da civilização, em meio aos excrementos, e chega às
esferas do divino; vai pelos clichês, pelos caminhos da cultura
de massa e chega a um universo pessoal, que reflete dolorosamente
o coletivo. Escatológico, no sentido filosófico, questiona
os fins últimos do homem ao colocar suas criaturas em situações-limite,
num mundo supra-real onde prevalece a ética da perversão,
um agônico fim-de-linha.
A atitude do artista
não se esgota no exercício dramático, na elaboração
do texto e, depois, da encenação: condiciona a existência
do cidadão. Na vida comum, Bortolotto parece um dos seus
insólitos personagens. Vive mal (do ponto de vista burguês),
sem dinheiro, num absoluto desprezo à aparência, com
jeito meio que de vagabundo.
Terrível contradição,
pois Bortolotto é incansável trabalhador. Está
sempre encenando suas peças com o Grupo Cemitério
de Automóveis, que criou em 1982 na cidade de Londrina, Paraná,
e transferiu para São Paulo há cinco anos. Trabalha
também em outras companhias. E além de encenar sua
obra, contando mais de duas dezenas de títulos, batalhou
a publicação de parte dela em dois volumes[1]. Coerente
ao estilo de vida, caracterizado por ostensivo desprezo às
convenções e às conveniências, não
fica atrás de benefícios oficiais para viabilizar
o exercício cênico, monta as peças com a única
riqueza que dispõe: talento e inteligência, sem grande
preocupação com o aspecto material. Integra, legitimamente,
a velha e maravilhosa saga dos malditos. É parente muito
próximo do Marques de Sade, de Kerouac e de Bukowski...
Cotidianos apocalipses
A técnica
dramatúrgica de Bortolotto está claramente vinculada
ao cartoon. Desenha personagens e situações com traços
vigorosos, esquemáticos, comunicando ao espectador instantaneamente
os fatos descarnados da narrativa. Não se perde em psicologismos.
Vai relacionando clichês e da relação nasce
o enredo, expõe o pensamento poético, cria um universo
em permanente curto-circuíto, onde tudo se desvanece, o sólido
se desmancha, a realidade cotidiana é apocalíptica.
A exemplo dos bons
e fortes cartunistas, caminha pelas sendas do non-sense e do humor
para invadir o território trágico, onde o destino
humano é manipulado por invisíveis e insensíveis
deuses. A linguagem do cartoon é inimiga dos meios tons,
do raciocínio analítico: torna volumosos alguns detalhes,
mas as coisas são como são e o grande desafio do homem
é alterá-las e humanizá-las. Não há,
nesse território de urgências e incandescências,
espaço para considerações filosóficas
e pregações moralistas, a não ser por meio
de clichês que ao expô-las exercem ferina crítica
às mesmas, colocando em xeque sua validade em face das realidades
vistas pelo avesso, do gesto humano registrado não pela aparência
realista mas pelos fundamentos da fantasia individual em permanente
choque com o coletivo.
Dentro da estrutura
de cartoon cabe de tudo. A narrativa assim elaborada expõe
as influências óbvias da literatura beat e de instituições
universais como o rock e o jazz. Tendo sido DJ de uma rádio
em Londrina, além de incluir nas suas aventuras estéticas
uma banda de rock, que surge e desaparece com igual facilidade,
Bortolotto não tem qualquer pudor em fazer os mais improváveis
personagens tecerem comentários sobre músicas e cantores
populares, criando situações absolutamente paradoxais.
Comentários ácidos, mas dramaticamente pertinentes:
lida com a cultura pop, ou cultura de massa, e nada melhor do que
o gosto musical para definir as inúmeras tribos ou, se quiserem,
a psicologia de diferentes segmentos coletivos.
É da cultura
de massa, também, que elege seus paradigmas temáticos.
Vai buscá-los nos filmes B, nos policiais norte-americanos.
Deles retira clichês facilmente identificáveis por
qualquer platéia, pois já pertencem ao imaginário
coletivo, e com eles elabora terrível (a despeito de sempre
bem humorada) visão deste mundo caótico e violento
em que se converteram os grandes centros urbanos brasileiros.
Aliás, Bortolotto
não tem preocupações com cor local.
Não hesita, por exemplo, lançar mão de expressões
em inglês, mesmo em título de peça (como Fuck
You, Baby) além de dar apelidos ingleses aos personagens,
o que é absolutamente normal, visto a imensa influência
do idioma inglês em nosso dia-a-dia. Usa na descrição
do contexto brasileiro situações típicas dos
Estados Unidos, vistas em filmes B. Como em Nossa Vida Não
Vale Um Chevrolet, onde o drama culmina numa luta de
rua, com lutadores contratados por poderoso gangster, exatamente
como se vê nos filmes.
Poderiam ser não
mais que plágios ou falta de imaginação, se
Bortolotto não tratasse essas questões com muita arte:
são meras construções formais, veículos
de um pensamento comprometido com a realidade urbana brasileira.
Essa realidade sim está absolutamente contaminada por dejetos
de uma cultura alienígena que são lançados
a cada instante sobre nós, sobre nossas crianças,
pelos meios de comunicação de massa, especialmente
a televisão, e pela publicidade. Ao usar tais clichês
logra comunicação imediata com a platéia. Certamente
por isso seus espetáculos atraem tanto os jovens.
Reduz a quase nada
as convenções cênicas, confiando piamente na
magia condutora da narrativa no palco: tempo e espaço não
são os da vida real. Fragmenta a ação,
intercala situações dessemelhantes, vai narrando através
de desenhos em sucessivos quadros. O personagem pode começar
sua fala em um ambiente, continuá-la caminhando pela rua,
a situação se altera por um encontro fortuíto,
e a fala termina em um terceiro ambiente. O movimento é incessante
e o espectador não precisa de ambientações
nem indicações para ver os diferentes
locais da ação.
O dinamismo cinematográfico
das peças é, na verdade, puro teatro. Arte de verdadeiro
contador de histórias. E os clichês que usa são
apenas aparências, como imagens de um sonho, dentro deles
pulsam arquétipos e suas relações conferem
às cenas lampejos e emergências do inconsciente coletivo.
Os fatos narrados, reportando sempre e metaforicamente a realidades
sociais, tornam a obra um inquietante registro de cotidianos apocalipses
numa sociedade marcada pela violência, onde moral e ética
sucumbem e as pessoas, sufocadas pela ausência de perspectivas,
agarram-se às ilusões, às fantasias.
Uma simples questão
de olhar
Embora anárquica,
a obra de Bortolotto está longe de ser niilista e o seu aparente
desprezo por tudo, oculta a utopia do poeta. Quando faz absoluta
inversão dos valores, como em Medusa de Rayban,
deixa brechas à reflexão sobre possibilidades de um
mundo melhor, mais humano e justo. Fala da violência, não
culpando o indivíduo que a produz e sim a sociedade que gera
esse indivíduo.
Medusa de Rayban
é exemplo pleno. Coloca em cena assassinos profissionais
às voltas com problemas do oficio. O que leva um deles, Johnny,
a fazer o elogio a outro, Jack, num programa de televisão:
Se tem uma coisa que admiro no Jack é a sua camaradagem,
ele não é de deixar assassino nenhum desempregado,
ele tá sempre arrumando um trabalhinho pra gente, ele criou
uma espécie de fundo pro assassino desempregado, assim, se
o coitado do assassino tá sem emprego, é só
matar um sujeito qualquer e provar de alguma forma que matou que
vai ter direito de retirar a ajuda do fundo. Assim o assassino vai
poder ir se mantendo até aparecer algum trabalho de verdade.
O Jack é um exemplo pra classe.
É o cartunista
dramático criticando esta sociedade em que o crime organizado
desafia a tudo e a todos, tomando muitas vezes a polícia
como refém. Pior do que isso, acha-se infiltrado nas próprias
corporações policiais e militares. A ironia de Bortolotto
faz a inversão dos valores ao conceber o crime organizado
nos termos das leis trabalhistas, com as mazelas decorrentes, desemprego
e sub-emprego, associações beneficentes e sua burocracia,
seguro desemprego etc.
Satiriza os lugares-comuns
demagogicamente usados para sensibilizar a população,
possibilitando atitudes arbitrárias à polícia
(e aos políticos), sem que os problemas maiores sejam de
fato enfrentados. A denúncia insistentemente
proclamada pelas autoridades de que há tráfico de
drogas nas portas das escolas termina colocando sob suspeita a ação
dessas autoridades, que ao repetirem à exaustão a
denúncia revelam no mínimo omissão frente ao
fato, ou quem sabe conivência. Estariam, na sátira,
as criancinhas vendendo drogas aos traficantes: O pai de um
traficante, inclusive, denunciou que seu filho comprou 100 gramas
de pó malhado de uma garotinha de 09 anos. Os traficantes
estão revoltados e pedem que os colégios sejam fechados
imediatamente e transformados em refinarias para que assim o governo
possa ter uma maior fiscalização sobre o produto e
consequentemente a polícia federal poderá aumentar
sua rede de proteção aos traficantes e tirar o controle
das drogas das pequenas mãos das famigeradas criancinhas.
Contudo, não
se trata de obra panfletária. O espectador segue os extravagantes
personagens com real interesse humano. Apesar das esdrúxulas
posições e atitudes que assumem, com sarcasmo revelam
algo de nós mesmos. Talvez o lado mais escondido de cada
ser, pulsações de desejos inconfessados e combatidos.
Torna-os simpáticos representantes do caos.
O paradigma desse caos
é a Medusa: ela só pode ser encarada de frente com
óculos rayban, que neutralizam e obscurecem a imagem, caso
contrário o horror da Medusa petrifica o sujeito. Há
no entanto outra possibilidade, descoberta por Perseu, que imobilizou
a Medusa ao fazê-la ver-se refletida em seu polido escudo:
melhor que o rayban são óculos espelhados, nos quais
a medusa se vê refletida. Para olhar a realidade sem ser destruído
por ela, são necessários anteparos ou dissimulações.
Cada indivíduo
pode ser uma serpente na cabeça da Medusa e suas atitudes
são orientadas pela intolerância. As ilusões
veiculadas a cada minuto pelos meios de comunicação
obscurecem a visão, arrancam o indivíduo do ambiente
natural, massificam-no e o expõem à violência.
A trágica e ambígua situação do sujeito
com a visão obscurecida é comentada na fábula
com que Baby encerra a peça: Tinha uma coruja que só
voava de dia, ela voava de óculos escuros. A porra da coruja
voando de óculos escuros sob o sol. Uns óculos feitos
especialmente pra ela. Aí um dia, uns caras pegaram a coruja
e cortaram as asinhas dela e falaram assim pra coruja: Coruja tem
que voar de noite. Coruja tem que voar de noite. Não adiantou.
A coruja sem as asinhas passou a andar de dia. Aí os caras
pegaram e cortaram as perninhas da coruja e falaram pra ela: Coruja
burra, você tem que andar de noite. Coruja burra. Não
adiantou. A coruja passou a rastejar de dia. Os caras deram dois
tiros na cabeça da coruja e ficaram dizendo pra defunta:
Coruja tem que rastejar de noite. Coruja tem que rastejar de noite.
Sacanagem. Sacanagem eles matarem a coitada da coruja. Não
precisava. Era só tirar os óculos escuros dela.
A fábula reverte
a situação da Medusa. Os óculos espelhados
devolvem o que se vê ao que é visto. Leva ao Velho
Testamento, o olho por olho, dente por dente. Mas, o ato de tirar
os óculos escuros da coruja, ajuda-a a encontrar seu meio
ambiente apropriado. É um ato solidário, humano, necessário.
Noutro momento, o cartunista
vê a solidariedade brotar na transpiração da
violência, de modo aniquilador. Entende que o sistema tem
o criminoso como elemento necessário. Acalenta-o nas prisões,
aprimora sua perversidade e o devolve às ruas, porque necessita
dele. A fatal identidade criminoso/vítima conduz a ação
exemplar de À Queima-Roupa.
A peça inicia
com o comentário de um locutor de rádio alertando
os ouvintes: O dia hoje tá quente, camaradinha. Estupraram
uma garotinha de cinco anos e ainda cortaram as duas tetas da menina.
Tem alguém, por aí, andando com um colarzinho macabro
no pescoço. Se você é do signo de Libra, eu
recomendo que saia armado hoje de casa. Se você for de outro
signo qualquer, é melhor fazer a mesma coisa. O dia hoje
não tá legal.
Na vibração
desse oráculo ganha a liberdade Cardan Mendes Santos. Cumpriu
12 anos por homicídio e deixa a prisão com um cândido
sorriso sádico. Devolveram-lhe os pertences: uma caneta bic
azul, sem tinta, uma revista Play Boy de setembro de 81, com a Monique
Evans na capa (confiscada em seguida, pois afirmou tê-la roubado)
e uma fita cassete do Made in Brazil. Com essas tralhas e a roupa
do corpo vai para as ruas.
Não é
figura monstruosa. Tem brilho nos olhos e sorriso quase infantil
ao contemplar as coisas. A perversão, perfeitamente apurada
na cadeia, não lhe deforma a fisionomia, atua apenas na relação
com o mundo, despojando-o completamente de senso moral e ético.
Mas, à sua maneira, é um sujeito solidário.
Decide, por exemplo, deixar o caminho livre para seu amigo Dimas
conseguir a mulher que ama e que o desprezou para ficar com Abílio,
seu irmão. Dimas sempre foi marginal, mas no esforço
para conquistar a namorada arrumou emprego de guardador de carros
e seu irmão, Abílio, é sujeito bem integrado
na sociedade, próspero contabilista. Saindo da prisão,
Cardan vai imediatamente procurar o velho companheiro Dimas. Através
dele consegue um revólver e pratica uns pequenos latrocínios
só pra desenferrujar. Inteirado do problema amoroso
do amigo, resolve tomar uma atitude: mata Abílio, sem deixar
qualquer pista que o identifique. Ocorre que Dimas, num dia de desespero,
dissera à ex-namorada que se não voltasse para ele,
mataria o irmão. É, portanto, o principal suspeito.
Preso, é julgado e condenado. Não deu certo, é
verdade, mas bem que Cardan tentou ajudá-lo, num gesto solidário.
Nas perambulações,
Cardan conhece um mendigo. Negrinho mirrado, com piolho, sarna e
fome. Tem uma filhinha, que também vive na rua pedindo esmolas.
No último encontro, o negrinho lhe conta que a menina foi
atropelada e morreu, assim ficou só no mundo. Pede a Cardan
um pedaço do sanduíche que está comento. Ele
recusa, come o último pedaço, mas, como é solidário,
saca o revólver e o põe na mão do mendigo,
volta as costas e vai embora. Perplexo o mendigo fica olhando o
revólver na mão, a princípio sem saber
o que fazer com ele. Depois, adquirindo uma súbita certeza,
empunha a arma firmemente e aponta para a platéia.
Volta aqui o jogo da Medusa vista com óculos espelhados.
A cena da conversão do mendigo em perigoso bandido é
sublinhada por uma notícia de rádio: A rebelião
no pavilhão 5 da penitenciária estadual foi rechaçada
de maneira violenta. Um número aproximado de 100 detentos
foi simplesmente massacrado. Grande parte da população
aprovou a ação da polícia.
Laços de
família
Embora a
violência seja a tônica de quase todos os textos de
Bortolotto sempre tem um cara sacando o revólver ou
assassinando alguém por nada -, a relação do
sujeito com a família é outra constante. Invariavelmente
como laço negativo, uma forma de prisão sufocando
o indivíduo, que faz tudo para se libertar. E ao se libertar
dessa prisão, cai em outra: a deste mundo cada vez mais violento
e hostil.
Em Fica Frio
Uma Road Peça Maurício vai em busca do
irmão, Fernando, por ordem do pai. Pertencem à pequena
burguesia de cidade interiorana e há muito Fernando saiu
de casa, ganhou o mundo, vivendo de trapaças e pequenos roubos.
Encontrando-o num quarto imundo, Maurício dá início
aos discursos com todos os lugares-comuns e as chantagens familiares.
Sente-se, na verdade, injustiçado: é o bom rapaz,
terminando o curso de Direito, virgem, sem vícios, mas o
pai prefere Fernando, o vagabundo, o pária. Tentando cumprir
a missão, Maurício vê o irmão assaltar
uma joalheria, participa da fuga viajando clandestinamente num trem,
dormindo em pensões miseráveis por várias cidades,
presenciando trapaças do irmão e continuamente discursando.
Fernando é inflexível: Eu nasci em lugar errado.
Eu não devia ter nascido em uma maternidade. Eu devia ter
nascido em um banco de táxi, em um avião, um trem,
em trânsito, em movimento....
Mas, num lance de sinceridade,
o truculento e cínico Fernando confessa seu medo. Fala do
filho que tem, resultado de transa com certa mulher em Alagoas.
Abandonou-os e nunca mais retornou. Maurício está
chocado: como teve coragem de abandonar o filho? E Fernando sorri
amargo: Coragem? Ei, brother, tá pensando o quê?
Que fobia é privilégio de carinhas gordinhos que prestam
vestibular pra faculdade de Direito? Eu também tenho medo...
pra caralho. E Maurício: De ser pai?. Retruca
Fernando: De ser pai, de ser filho, de ser irmão.
Também Lupa,
de Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet, tem o sonho
de cair no mundo, mas levando consigo o filho de cinco anos, que
vive curtindo vídeos pornográficos alugados pelo pai.
Sabe o que eu era a fim de fazer?, desabafa Lupa ao
seu irmão Monk: Descolar um opalão daqueles
quatro portas, daqueles antigão, pegar meu guri, o Caio,
botar no banco da frente junto comigo, encher o banco de trás
de cerveja e danoninho e cair na estrada, sem data pra voltar, sem
pensar em voltar. Desafabo detonado pela crise da família,
desde a morte do pai. Na verdade, crise da quadrilha de ladrões
de carros, formada por eles sob a chefia do pai, seu
Castilho. Lupa e Monk agiam, o irmão menor, Slide, era afastado
do trabalho porque não levava jeito pra coisa.
Slide sofria com isso, sentia-se discriminado. Mas, sofria ainda
mais por não saber onde andava a mãe. E com a morte
do pai, passa a insistir pra que os irmãos lhe contem a verdade.
Será ela uma puta que vive dando o rabo num puteiro qualquer?
Não, protestam: é uma louca. Vive num manicômio.
Num devaneio, Lupa conta a história, talvez a verdadeira
história, para Sílvia: Eu sempre lembro da torneira
pingando. O pai disse que a mãe tinha deixado a torneira
pingando. Ela não deu atenção, não ouviu,
não sei, a mãe era cheia de si. O pai chutou a cabeça
dela. A mãe pirou. Eu sempre lembro da torneira pingando.
Pode ser metafórico
esse desmanche da quadrilha, porque o que se desfaz
é a falsa união da família sujeita à
tirania paterna. Assim como metafórica é a luta de
rua, para a qual são contratados, como antagonistas, Slide
e Monk. Lutam, até a morte de Slide. E eles se amavam. Qual
o sentido dessa luta senão a inexorável aniquilação
de qualquer laço? A família não passa de um
acidente. Que algumas vezes dá certo.
Mae contrata o detetive
Jasão para procurar o marido, Toddy. Por que ele foi embora?
Por que envia cartões postais de Atacama, que ela prega no
teto do quarto, onde o olhar não alcança? Mesmo Toddy
não sabe exatamente por quê. Talvez porque ela estivesse
sempre lá, o tempo todo, quando eu queria ficar sozinho,
tomar cerveja, arrotar e escrever poemas. E a mulher de Jasão
também o mandou embora, quando descobriu que o marido andava
trepando com outra. Mas Jasão, por seu lado, odiava a mania
da mulher lhe perguntar, toda vez que ele saía de casa, se
tinha carregado o revólver direitinho. Por isso demorava
a voltar. Cada vez demorava mais. Altas horas da madrugada. Os laços
se desfazem em Postcards de Atacama, porque todas as
pessoas estão à procura de alguma coisa que não
sabem o que é. O Punheteiro editando imagens de apresentadoras
de TV, a Putinha que adora cama em forma de coração,
o Big Tony nas suas ridículas performances de narciso publicitário,
o vizinho bicha Neiberg, sempre se oferecendo para ajudar... A peça
começa com uma cantiga infantil, a nostalgia de um tempo
que só existe na memória, o paraíso perdido,
e termina com aquela mulher deitada no chão do quarto, com
postais de Atacama pregados no teto, olhando... onde o meu
olhar já não alcança.
Solitárias e
malditas
No núcleo familiar,
célula mater da sociedade, inicia a diluição
dos valores. Seduzem as atrações deste mundo dominado
pelo volume e velocidade da informação, pela publicidade
que apregoa a felicidade a preços módicos e baseada
em produtos industriais. Nesta época de triunfo do materialismo
os velhos padrões familiares se desfazem e nada os substitui.
A pessoa fica sem chão.
Em O Cara que
Dançou Comigo, Sônia proclama sua independência:
Saí de casa porque não estava agüentando
mais a pressão lá. Eu não tava agüentando
mais meu pai, eu não tava agüentando mais a minha mãe,
eu não tava agüentando mais a minha família,
me exigindo uma porrada de coisas que eu não podia dar a
eles... Aluga um apartamento barato que logo é invadido
por Mississipi, o vizinho psicótico que se acredita ex-combatente
do Vietnã, permanentemente alerta contra o inimigo.
Enfrenta o cara, decide que vai lutar pela tranquilidade que buscava
e que a levou a abandonar a família. No decorrer da luta,
vê-se refletida nas obsessões do sujeito. Depois de
violenta depredação dos dois apartamentos, Mississipi
a persegue pelas ruas. O embate final sugere o nascimento do amor
entre ambos. Ele coloca moeda na juke-box e dança com Sônia
um blues. Na atmosfera romântica, Mississipi, com dolorosa
mágoa, lhe diz: Eu espero que você entenda. Eu
não posso ir muito longe com você, mas também
não posso deixar você aqui. E desfere um tiro
na cabeça de Sônia, que cai sobre a juke-box, ao som
do blues.
Existem ainda aquelas
moças que vêm do interior para a Capital, sem romper
formalmente com a família, e vivem prestando contas à
mãe por telefone. Nessas conversas, transformam ocorrências
sórdidas em fatos animadores, agradáveis aos ouvidos
maternos. Mas, na agitação da cidade grande, buscam
a realização de seus desejos secretos, procuram desesperadamente
o amor, dão largas às fantasias e, fatalmente, racham
a cara.
Leyla, de Leyla
Baby, é uma delas. Vai à Capital fazer cursinho
e vestibular para Comunicações. O cursinho é
o passaporte e a faculdade seria o território de onde proclamaria
a independência. Mas, traz ocultos os sonhos verdadeiros:
tornar-se intelectual, viver o mundo chic e, sobretudo, descolar
seu príncipe-encantado. Ele logo bate à porta na figura
de Otávio, um parasita mau caráter. É acolhido
por Leyla. Vive em seu apartamento, sai com ela e zomba de seus
sonhos, provoca atrito com seus amigos e Leyla não se dá
conta de que aquele sapo, por mais que o beije, jamais se transformará
num príncipe. Vê ruírem as ilusões e
o golpe fatal chega com a reprovação no vestibular.
Precisa de apoio e alí está Otávio. Faz
alguma coisa por mim, suplica Leyla. E Otávio a olha
irônico: Você é tão insignificante.
Leyla senta-se no parapeito da janela, do décimo andar, o
abismo aos seus pés. Vê Otávio se aproximar
com a mão estendida. Sorri e também lhe estende a
mão. Mas ele abaixa-se: ia apenas apanhar a garrafa de vinho
que estava ali perto, no chão. Vira-lhe as costas e vai para
longe, tomar o vinho. Leyla salta no abismo. Otávio vai à
janela, senta-se no parapeito, de onde Leyla saltou, bebe o último
gole, olha pra baixo e só tem uma falsa preocupação:
E agora? Quem limpa a kitchnete?
Sílvia, de Nossa
Vida Não Vale Um Chevrolet, um dos mais belos personagens
criados por Bortolotto (na Mostra Cemitério de Automóveis
ganhou interpretação inesquecível da ótima
Fernanda D´Umbra), compõe a saga das solitárias
malditas, que vêm à cidade grande sem romper o cordão
umbelical. Freqüenta um boteco onde encontra desconhecidos
que convida ao seu apartamento. Um por noite. Repete sempre o mesmo
texto, quando chegam no apartamento, referindo-se ao namorado anterior
que levou tudo ao ir embora, razão de estar o espaço
tão vazio. As características desse suposto namorado
muda a cada vez, porque se refere ao que idealizou na relação
com o cara da noite anterior. Depois, telefona para a mãe
dando a versão idealizada do namorado, num eufórico
agora vai dar certo. Assim é que Monk, ladrão
de carro, por ter-lhe dito que seu nome foi inspirado em Theolonius
Monk, pianista de jazz, é descrito à mãe como
um pianista, músico de jazz, de ótima família.
Depois de passar uma noite também com Lupa, Sílvia
se encanta com a sincera fragilidade de Slide. Talvez tivessem nascido
um para o outro. À mãe, diz tratar-se de um empresário,
rapaz maduro, do tipo que sabe o que quer todo o contrário
do que é Slide, mas o que vale é a projeção,
o sonho. Slide, poderia ser um bom companheiro, mas morre dia seguinte
na luta com Monk. O discurso de Sílvia ao novo possível
namorado, tem sensível alteração: Slide, o
anterior, não havia ido embora e levado tudo, mas deixou
um vazio enorme: É aqui que eu moro. Você gostou?
Não tem muita coisa. É que eu não tenho muita
coisa mesmo, o cara que morava comigo, ele sim, tinha bastante coisa,
era empresário, a gente se dava bem, mas aí aconteceu
um acidente e, bom... aí ficou esse puta vazio que cê
tá vendo.
A solitária
maldita e os apodrecidos laços familiares são matéria-prima
para o mais eloqüente cartoon dramático de Bortolotto:
Fuck You, Baby. Ela é Sacha, que viveu sempre
trancada num enorme e confortável quarto, na mansão
dos Sacha, com todos os recursos que a tecnologia criou para o entretenimento.
É uma espécie de Siddharta ao avesso. Um dia, Sacha
salta a janela e ganha o mundo. Não a move a mesma preocupação
de Siddharta, que era procurar as causas do sofrimento humano, e
sim ir em busca dos possíveis prazeres do mundo. As cenas
de Sacha Pai e de Sacha Mãe em busca da filha desaparecida
lembram cenas de Alfred Jarry. A Mãe é ninfomaníaca
desvairada, transa com todo macho que passe por perto, mas nunca
transou com o marido: Sacha é fruto de inseminação
artificial, tendo Sacha Pai contribuído com o sêmen
no laboratório. É que mulher nenhuma consegue excitá-lo.
A única coisa que o deixa de pau duro, descobriu
já adulto, é pudim de confeitaria. E no final, depois
de incontáveis peripécias, os Sacha se reúnem
mas não se reconhecem: eles nunca se olharam, de fato. E
pela primeira vez na vida, Sacha Pai fica de pau duro
por causa de uma mulher: Sacha, a filha.
A peça acentua
os desvios e os valores deteriorados da classe média urbana.
A primeira aventura de Sacha é com dois burguesinhos, o Coca
e o Pepsi, que curtem ver a mulher tirar a roupa, mas só
fazem sexo com bonecas infláveis. Surgem os bad boys Atila
II e Teodorico, que comem (no sentido figurado e também literal)
Coca e Pepsi, seqüestrando Sacha, que vai arrastada pelos cabelos.
Teodorico esclarece a Sacha que eles pertencem a uma facção
dissidente do fã clube de Fábio Jr. (cantor popular
brasileiro, que por colocar mel em cada nota é chamado de
romântico, protótipo do bom rapaz). Queriam limpar
esse passado. Mas até agora todos os nossos esforços
foram em vão. Já cometemos uma série de atrocidades
e barbaridades e nada, ninguém notou, nem sequer uma porra
de um fã clube punk. Parece que o estigma de termos feito
parte do fã clube do Fábio Jr. Vai nos acompanhar
eternamente, somos rejeitados, párias no universo de adoradores
de cantores pop, ninguém nos aceita, ninguém ainda
percebeu que estamos regenerados. Fábio Jr. nunca mais, agora
só queremos a dissonância, nós somos bad, nós
somos sad, nós somos hardcore. Chega Átila II
e fica possesso porque Teodorico está fazendo discurso em
vez de comer a bunda da garota. Manda-a ficar de quatro e enquanto
a violenta, troca idéias com Teodorico, que depois
não quer comer a menina e confessa sua nostalgia por antigas
canções de Fábio Jr. Continua o bom rapaz.
Todos se esforçam por ser bad, mas o condicionamento burguês
é mais forte. E fica Sacha de quatro, ansiosa por ser violentada
pelo menos mais uma vez, enquanto os bad boys se retiram falando
de canções, como dois bons meninos burgueses fantasiados
de bad, de sad, de hardcore.
Se a postura de Mário
Bortolotto é antiga, remetendo à época do rebelde
sem causa, sua obra revela que não faltam causas para
a rebeldia, no mundo contemporâneo.
Um mural de grafiteiros
Comemorando
os 18 anos do grupo que fundou em Londrina, com o qual percorreu
festivais de teatro por todo o país provocando polêmicas,
antes de se radicar em São Paulo, Mário Bortolotto
organizou a Mostra Cemitério de Automóveis,
realizada no Espaço Cênico Ademar Guerra, porão
do Centro Cultural São Paulo, de agosto a novembro de 2000,
apresentando 14 dos seus textos.
Para essa maratona,
não contava com nenhum dinheiro, nem patrocínios,
exceto o da Secretaria Municipal de Cultura que concedeu o espaço.
E também o grupo estava desfalcado de atores, pois quase
todos já retornaram a Londrina. Mas nada disso constituiu
problema; as produções eram extremamente baratas
o próprio espaço cênico (com sua arquitetura
ampla, bela e acidentada) era o cenário; por elementos cênicos,
sofás velhos, uma geladeira decrépita, coisas que
se consegue em lixões. E o evento comprovou o prestígio
que Bortolotto desfruta no teatro paulista: quase duas dezenas de
atores vieram espontaneamente participar do trabalho. Entre eles,
alguns nomes já projetados no cenário artístico
paulista, como Rodrigo Matheus, Jairo Matos, Milhem Cortaz, Eucir
de Souza. Comungaram todos as idéias contraventoras de Bortolotto
e, em poucos ensaios, cada um criou personagens afinados ao clima
geral, possibilitando a elaboração de um painel gigantesco
de cartoons transcritos por grafiteiros cênicos.
Durante os três
meses de temporada, apresentando duas sessões diárias,
com peças diferentes, de terça-feira a domingo, não
faltou público. E na platéia viam-se com freqüência
jovens e veteranos atores, acompanhando com muito interesse essa
insólita aventura. O público presenciava interpretações
brilhantes das fábulas transgressoras, identificando nelas
uma nova maneira de ver e interpretar as condições
do homem comum no mundo atual.
No sentido estritamente
teatral, a Mostra revelava que com inteligência e talento
pode-se realizar teatro de ótima qualidade, apesar da penúria
e da falta de apoio em que vive a arte no Brasil. Esse aspecto é
importante e demonstra que mesmo ao encarar os desafios de produzir
teatro, Bortolotto vai pela contramão.
Apesar do fato incomum
representado pela Mostra do Cemitério de Automóveis,
quer pelo valor da obra quer pelas condições da produção,
além do prodigioso volume de trabalhos apresentados, o evento
não mereceu especial destaque na imprensa. Apenas duas críticas
abordaram duas das peças, isoladamente do conjunto. Indicação
concreta do marasmo em que se encontra o ofício de se pensar
o teatro por aqui. Mas nem tudo está perdido: Pelo conjunto
de trabalho, Mário Bortolotto foi contemplado com o Prêmio
APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes)
de Melhor Autor e, por Nossa Vida Não Vale Um
Chevrolet, que após a Mostra continuou temporada no Teatro
Sérgio Cardoso, foi indicado ao Prêmio Shell de Melhor
Autor.
SEBASTIAO MILARÉ.
Crítico e pesquisador de Teatro. Autor de Antunes Filho e
a Dimensão Utópica; A Batalha da Quimera - Renato
Vianna e o Modernismo Cênico Brasileiro; em preparação:
Hierofania - O Teatro Segundo Antunes Filho. Organizador do livro
O Teatro dos Sete Povos Lusófonos. Dramaturg do projeto Viagem
ao Centro do Círculo, uma investigação teatral
nos países de língua portuguesa, que resultou no espetáculo
Quem Come Quem, direção de Stephan Stroux (Coimbra,
2000). Autor de A Solidão Proclamada (Direção
de Sandro Borelli - São Paulo, 1998), A Troupe Futurista
Conta o Bumba Meu Boi Modernista (Direção de Gilberto
Gawronski, Rio de Janeiro, 1992). Curador dos eventos "Mercosul
Cultural" e "Navegar é Preciso", ambos da
Secretaria Municiapal de Cultura, realizados nos Centro Cultural
São Paulo.
NOTA
[1] Seis Peças
de Mário Bortolotto, contendo: Medusa de Rayban; Vamos Sair
da Chuva Quando a Bomba Cair; Fuck You, Baby; Fica Frio Uma
Road Peça; Leila Baby; O cara que Dançou Comigo. Edição
particular, Londrina: 1997. Seis Peças de Mário Bortolotto,
Vol. II, contendo: Postcards de Atacama; Nossa Vida Não Vale
um Chevrolet; Uma Fábula Podre; Curta Passagem Quatro
Pocket Peças; À Queima-Roupa; A Lua é Minha.
Edição particular, Londrina: 1998.
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